Benedita, Damásia e Ignácia – três mulheres escravizadas no Paraná
Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão …
De um lado, uma negra escrava
Os olhos no filho crava,
Que tem no colo a embalar…
E à meia voz lá responde
Ao canto, e o filhinho esconde,
Talvez pra não o escutar!
“Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem;
Esta terra é mais bonita,
Mas à outra eu quero bem!
Castro Alves
Dados permanentes sobre a quantidade de pessoas escravizadas no Brasil apareceram apenas na segunda metade do século XVIII, com a elaboração sistemática de recenseamentos, as chamadas listas nominativas de habitantes. Em 1798, o estado do Paraná ganha um censo reunindo informações de Antonina, Guaratuba, Paranaguá, Castro, Curitiba, Lapa e São José dos Pinhais, isto é, de todas as localidades então existentes. Foram relacionados 4.273 cativos dentro de uma população de 20.999 pessoas, o que representava cerca de 20 % dos habitantes.
Não há dados sobre a quantidade de mulheres escravizadas, mas eram muitas, talvez metade das pessoas mantidas em cativeiro.
Elas também estavam fadadas à violência dispensada aos cativos, com o agravante da sexual, flagelo recorrente sob a trato de seus senhores.
Muitas sonharam com a liberdade. Organizaram revoltas, protagonizaram fugas e recorreram à justiça para sessar a violência que lhes era infligida. Tantas não conseguiram e, infelizmente agravaram seus suplícios. Este artigo traz a história de três delas.
Benedita
Benedita chegou quase nua à casa do juiz municipal da Vila de Castro, no interior do Paraná. As roupas rasgadas grudavam no sangue que fugia das costas. Estas, assim como outros lugares de seu corpo, estavam cobertas de lacerações. Sulcos eram visíveis nos ombros, peito, pescoço. O braço direito aleijado por uma grande cicatriz de queimadura, assim como o joelho direito.
A visão da preta, mulher escravizada desde o ventre da mãe e que cambaleava na soleira na porta, tomou de horror o escrivão, que relatou a cena no processo:
“Acaba de apresentar-se em quase completa nudez, a preta Benedita, com o braço direito aleijado de uma grande queimadura cicatrizada, com outra também cicatrizada no joelho direito e com as costas e outros lugares do corpo inteiramente cortados de inúmeras cicatrizes […] mais um desumano e bárbaro castigo, que segundo a mesma infeliz tem lhe sido infligido pelos seus senhores”.
Benedita era escrava de Luis Carneiro Araújo, morador no Socavão, distrito da então Vila de Castro, no interior do estado.
Era dez de setembro de 1861 quando ela dirigiu-se à casa do juiz Domingos Martins de Araújo, para prestar queijas do seu senhor. Na presença do escrivão, relatou que por diversas vezes seu senhor havia praticado castigos violentos e que naquele dia havia sido castigada atrozmente por não fazer um serviço que dependia de muita força.
Benedita tinha cerca de 30 anos. Era solteira. Não sabia ler nem escrever. Não possuía ofício especializado, possivelmente desempenhava as diversas atividades que seus senhores exigiam. Não se sabe se Benedita dividia o cativeiro com outros escravizados, porém, a exploração excessiva da mão de obra cativa fazia parte de seu cotidiano.
A violência dos donos de escravizados preocupava a Coroa Portuguesa. Não porque essa se apiedasse das costas pretas que eram penalizadas diariamente, mas porque um escravizado que muito apanhava um dia poderia se revoltar e fugir, ou organizar uma fuga em massa. E cativos fugidos eram prejuízo à economia escravocrata.
Por isso Benedita recorreu ao juiz da Vila. Do dia da denúncia à autuação foram mais de cinco meses. Era 25 de fevereiro de 1862 quando Benedita foi convocada para prestar novos depoimentos. Na ocasião reafirmou que sofria castigos violentos e declarou que: “Várias pessoas assistiam os castigos… que foi castiga várias vezes, de manhã e à tarde em diferentes épocas. Que a lesão da mão e do joelho foi porque apanhou tanto e deu-lhe um ataque e caiu no fogo. Que teve uma criança a pouco tempo, mas morreu, bem pequena, sem estar batizada. E que toda a vizinhança sabe desses maus-tratos”.
As pessoas assistiam aos maus tratos e castigos desmedidos, mas sem intervir. Luis Carneiro Araújo também prestou depoimento e na ocasião afirmou que:
“Sabe que está sendo acusado por uma escrava, de ter sido surrada. Que por diversas vezes tinha castigado sua escrava e que sempre com moderação. Que a escrava não era desobediente, mas fujona, saindo de casa sem causa, mas que nunca aplicava castigos rigorosos. Que sempre recebera em casa quando vinha apadrinhada sem lhe administrar castigo algum. Que as vezes castigava a escrava com relhada quando era preciso”.
E em 25 de fevereiro de 1862, após decisão do tribunal de júri, sentenciou-se o veredito final. O juiz Domingos Martins de Araújo optou em acatar a decisão do júri, ou seja, absolveu Luis Carneiro de Araújo. Os autos do processo afirmam que o tribunal do júri absolveu “por unanimidade de votos que o réu não pregou castigos brutais e rigorosos a escrava”.
Na documentação não consta o que aconteceu com Benedita, mas provavelmente voltou ao julgo do seu senhor.
Damásia
Era abril de 1850 e Damásia vivia na Vila de Castro como escrava de Ignacia Maria. Tinha cerca de 20 anos, era solteira e tinha um filho, o pequeno João. As mulheres escravizadas da sua época, além dos afazeres nas lidas diárias eram encarregadas de gestar filhos cativos aos seus senhores, possibilitando a perpetuação do sistema escravista. Nascer escrava numa sociedade governada por homens não era nada fácil, principalmente para uma mulher como Damásia que desejava impor suas próprias vontades e livrar-se das subordinações senhoriais.
assim como outros lugares de seu corpo, estavam cobertas de lacerações. Sulcos eram visíveis nos ombros, peito, pescoço. O braço direito aleijado por uma grande cicatriz de queimadura, assim como o joelho direito.
Assim como Benedita, Damásia sobrevivia na sociedade oitocentista castrense que era constituída por diversos sujeitos, dos quais, viajantes que permaneciam por lá durante um curto período de tempo, os ricos fazendeiros (detentores de poder econômico e político), sitiantes, trabalhadores pobres, cativos e assalariados.
Damásia, apesar da condição de escravizada, era tomada de sonhos. Entre eles, o de ser livre. Viver longe da chibata, criar o filho com dignidade, viver um grande amor…
E foi assim, tomada de sonhos e esperança, que fugiu da casa de sua senhora. Na noite de 12 para o dia 13 de abril de 1850, quando todos encontravam recolhidos em seus aposentos a cativa agarrou pelo braço o filho e partiram rumo ao desconhecido. Pela manhã, na casa de Ignacia Maria a ausência da escrava foi notada. E a notícia do sumiço dos dois se espalhou entre a vizinhança.
De acordo com os registros dos Autos de Interrogatório, Damásia, quando deixou a casa de sua senhora com o menino, “tomou os caminhos dos matos na direção por onde seguia o rio Iapó e emaranhou-se mata a dentro e por lá ficou com o filho João”.
Damásia caminhou com o pequeno João por dois dias, buscando a segurança da mata fechada. No peito, um misto de esperança e medo. Uma menina que, no auge dos 20 anos, carregava o desejo de dias melhores.
Mas, o destino se encarregou de dar cabo às suas esperanças. Enquanto se embrenhava pela mata o pequeno João foi picado por uma cobra e morreu nos braços da mãe. Desesperada, fugitiva, perdida. Seus gritos devem ter ecoado por toda a floresta. Sem saber o que fazer, quase enlouquecida, atirou o corpo da criança no rio e voltou para a casa de sua senhora.
Era 16 de abril de 1850 quando Damásia retornou. Ignacia Maria, ao saber da morte do pequeno João não hesitou em informar as autoridades locais do paradeiro da cativa fujona e pediu que fosse feito buscas no rio Iapó para encontrar o cadáver do escravinho. Ainda solicitou que o juiz interrogasse a escrava, pois esta deveria esclarecer à justiça detalhes a respeito da morte do menor. Suspeitas eram lançadas que Damásia tivesse assassinado o próprio filho.
Conforme o desejo da senhora Ignacia Maria, os peritos fizeram buscas em torno o local descrito pela escrava Damásia, por onde estivera com o filho e assim o “cadáver do menino foi localizado em estado de decomposição nas águas do rio Iapó”, o que de acordo com dados nos Autos do Interrogatório, não possibilitou ser levado à cidade, tendo que ser diretamente conduzido ao cemitério.
Seis meses haviam se passado da morte do menino quando Damásia foi convocada a comparecer ao interrogatório judicial. Era 16 de outubro do mesmo ano. Nessa data foi questionada a respeito das relações com sua senhora, dos motivos de sua fuga e das causas que levaram à morte de seu filho. A interrogada declarou que ainda estava sofrendo por conta da morte da criança. Que a mesma havia fugido sem motivos, pois, não era maltratada pela sua senhora e que o pequeno João foi mordido por cobra e morreu.
Tão grande era o sofrimento demonstrado por Damásia que o Juiz Municipal Antonio Nunes Correa declarou que a escrava não era a autora da morte do menor, pois a mesma “sofria de sentimentos de humanidade”. E assim para a justiça se encerrava o caso da fuga dessa escrava e da morte de seu filho.
Ignácia
Ignácia era uma mulher escravizada nascida nas primeiras décadas do século XIX, em Guarapuava. Viveu nas terras de seu senhor desde seu nascimento até sua venda, aos 30 anos de vida, aproximadamente. Nessa idade tinha tido dois filhos e era casada. A venda para um novo senhor deu possibilidades à Ignácia e seu marido, provavelmente pessoa livre ou liberta, de negociarem condições para a compra da tão sonhada liberdade.
Assim, ficou estipulado que o casal trabalharia alguns anos e no fim destes Ignácia seria livre. Ainda no cativeiro ela engravidou novamente e deu à luz a um menino que recebeu o nome de Antônio.
Logo acaba o período que eles teriam que trabalhar para conseguir a liberdade de Ignácia. A alforria havia sido alcançada. Porém, seu senhor lhe nega a liberdade. Sentindo-se traído seu marido busca na cidade o cumprimento do contrato estabelecido. Procura a polícia, mas está nada pode resolver a não ser depositá-la em poder de terceiros até a resolução do caso.
Enquanto isso, na senzala, o escravagista decide se vingar pela insolência do marido de Ignácia e ela e o filho são duramente castigados. O pequeno escravo sofre demais, o flagelo imposto a ele arrancaria urina de um adulto.
Tão grande era o sofrimento demonstrado por Damásia que o Juiz Municipal Antonio Nunes Correa declarou que a escrava não era a autora da morte do menor, pois a mesma “sofria de sentimentos de humanidade”. E assim para a justiça se encerrava o caso da fuga dessa escrava e da morte de seu filho.
Não aguentando mais ver o filho castigado Ignácia o pega e foge. Ganha o mundo, se escondendo meses em um lugar, meses em outro. Quatro anos se passam quando um capitão-do-mato a encontra em Campo Largo, hoje Região Metropolitana de Curitiba a 229 quilômetros da fazenda de seu senhor.
O Capitão lhe diz que a levará de volta à casa do algoz. Um retorno aos castigos. Longe do marido, na condição de fugida, com o filho pequeno, as penas que a esperavam, e o pior, que esperam seu filho, eram inimagináveis.
Encurralada ela se lembra das sevícias e do sofrimento e prevê o castigo que os aguarda. Num momento de loucura, ou quem sabe de extrema sanidade, pega uma foice e desfere dois golpes certeiros na cabeça do filho. O pequeno não resiste aos ferimentos e morre ali, na frente da mãe e sob os olhos horrorizados do capitão-do-mato.
Interrogada, mais tarde, Ignácia diz ter matado o filho para não vê-lo sofrer no cativeiro.
Seu destino, não se sabe…
Pesquisa: Jose Lucas (Folha do Pirajuçara)