De quem é a culpa da destruição de nossos mananciais?
O sonho de um lugar para a família se abrigar, de cuidado, tranquilidade, para viver a felicidade de ter um lugar só seu. Esse não é apenas um sonho, mas um direito, o direito à moradia digna, garantido pela Constituição Federal. A constituição de 1988 vai além do simples direito de morar, garantindo o direito a um local seguro, com tratamento de esgotos, água, luz, coleta de lixo e oferta de serviços sociais como creche, transporte público e lazer. Mas, diante de uma sociedade desigual, onde grande número de mulheres, homens e crianças simplesmente deixam de existir, são excluídos do sistema econômico e social, expulsos para áreas periféricas, áreas de preservação de mananciais, por um capitalismo devorador, aliado aos poderes corruptos constituídos. São expulsos dos centros de circulação econômica onde estão os aparelhos culturais, educacionais, de saúde e transporte, os bons empregos, e sobrevivem como podem. Essa faceta perversa, que privilegia a especulação imobiliária de grandes empreendimentos nos centros das cidades, aliada à falta de programas consistentes de construção de moradias populares por parte dos governos Federais, Estaduais e Municipais, o déficit habitacional de quase seis milhões de domicílios em nosso País, tudo isso, não matou esse sonho de uma moradia digna. Posso dizer de Valdelice, que perdeu o emprego durante a pandemia da COVID19, depois de 15 anos trabalhando como doméstica, sem contrato, sem carteira assinada, sem nada. Seu esposo, pedreiro, caiu do andaime e conta com a filha adolescente para carregar os blocos pesados e assim o ajudar a manter o seu trabalho, a consulta médica demora a chegar. Sem poder pagar o aluguel, Valdelice viu os anúncios de venda de lotes, um monte deles. Daria para dar o carro velho da família de entrada e pagar as prestações. O local estava descampado, terra revirada, muito toco de árvore queimando, mas a família decidiu entrar nessa. Os agenciadores facilitam, é só procurar a “associação” ou o “corretor”, tem terreno de todo tamanho e preço. Terrenos em áreas de mananciais, áreas remanescentes de Mata Atlântica, beira de reservatório de fornecimento de água, de nascentes e córregos, terras públicas invadidas, terras baratas, terras griladas, crime organizado acenando com um lugar para morar. E ai de quem não paga as prestações, é tiro, é ameaça, é bala. Valdelice jamais terá a escritura de sua casa, viajará horas de ônibus para encontrar um Posto de Saúde ou Hospital, naquele momento de emergência. Vai ter que contar com a vizinha para cuidar de sua filha pequena, para poder trabalhar, não tem escola nem creche e Valdelice vai ter que enfrentar o barro, a enchente, o lixo e o esgoto correndo a céu aberto e levará a culpa por poluir os mananciais e destruir a natureza em lugar de quem a expulsou, no lugar dos verdadeiros culpados.
Neste cenário o poder público deve ser chamado a responder. A omissão de prefeitos no respeito a ocupação do solo, ou política de licenciamento ambiental junto a órgãos legalmente estabelecidos deve ser alvo do ministério público com a devida punição.
Uma política habitacional deve estar no centro de qualquer governo em todas suas esferas.