Escravos da religião: os escravizados pela Igreja no Brasil
Na época da escravidão no Brasil, as pessoas escravizadas pela Igreja eram chamadas de “escravos da religião”. Os escravizados mantidos por mosteiros e conventos também eram obrigados a professar a fé católica, participando de missas, momentos de orações e recebendo os sacramentos.
Os que se rebelavam quanto à conversão costumavam ser punidos com castigos “de forma exemplar”, ou seja, com intensidade suficiente para convencer os demais a não repetir gestos de desobediência.
Além disso, a luta pela aquisição de liberdade — a compra de uma carta de alforria — costumava ser mais difícil para um escravo de ordem religiosa do que para alguém que estivesse sob o jugo de um senhor leigo.
“Na hora de qualificar os pais, o monge não os qualificava como ‘escravos da Ordem de São Bento’, mas sim como ‘escravos da religião’”, conta o historiador Vitor Hugo Monteiro Franco, autor do livro recém-lançado ‘Escravos da Religião’ (Ed. Appris), pesquisador na Universidade Federal Fluminense (UFF) e idealizador do podcast ‘Atlântico Negro’.
Estudando os arquivos da Ordem de São Bento desde 2014, o pesquisador descobriu como viviam as pessoas escravizadas pela Igreja.
“Uma das principais descobertas foi o próprio termo ‘escravos da religião’”, conta.
Para o pesquisador, residia aí uma diferença fundamental entre o modo de vida dos escravizados mantidos por instituições religiosas: o fato de o senhor não ser uma pessoa, mas sim uma entidade.
“Parece simples, mas não é. A situação geral da escravidão no Brasil é de escravos privados, de senhores leigos. No caso dos ‘da religião’, eles não pertenciam a um monge específico, eram de propriedade coletiva. E isso teve repercussões na vida dessas pessoas para sempre, porque influenciava na forma, no dia a dia deles”, diz o historiador.
Franco ressalta que o cotidiano desses negros escravizados estava “regulado” pelos hábitos religiosos do catolicismo e da vida monástica.
“Os monges conheciam cada momento, cada fase da vida dos seus escravizados. Por mais que as propriedades fossem enormes, eles tinham o controle administrativo sobre aquelas pessoas, ao contrário dos senhores leigos, que muitas vezes tinham um contato muito pequeno com os escravizados”, compara.
“Isso dava (aos religiosos) um poder muito grande. Ser ‘escravo da religião’ significava ter sua vida controlada por uma instituição religiosa”, acrescentou Monteiro Franco.
E não era um rebanho pequeno para ser controlado. De acordo com as pesquisas de Franco, quando os religiosos emanciparam seus escravos, em 1871, somente os beneditinos tinham um total de 4 mil escravizados.
“Eram três as principais ordens religiosas escravistas do Brasil: os jesuítas, os beneditinos e os carmelitas. Em menor escala, os franciscanos também”, elenca.
Gravidez de escravizadas incentivada pela igreja
Uma maneira de garantir a abundância de mão de obra escrava era o incentivo que os monges davam para que as escravizadas tivessem muitos filhos.
“As mulheres que procriavam pelo menos seis filhos conseguiam privilégios, tais como não realizarem trabalhos ‘penosos’”, conta o historiador Robson Pedrosa Costa, autor do livro ‘Os Escravos do Santo’ (Editora UFPE) e professor no Instituto Federal de Pernambuco e na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
A partir de 1866, os benefícios às mães de pelo menos seis filhos passaram a ser a liberdade gratuita — desde que elas “estivessem devidamente casadas”, pontua o historiador.
Para os monges senhores de escravos, religião era uma coisa, negócios eram outra. Pelo menos é o que fica claro em outro achado do historiador Monteiro Franco: nos registros de batismo, a maior parte das crianças era registrada como sendo filho de mãe solteira.
Violência contra os escravizados pela Igreja
O historiador Vitor Hugo Monteiro Franco encontrou registros que atestam atos de crueldade. “Tem um caso, em um fazenda de Cabo Frio, também dos beneditinos, em que dois monges foram presos depois de matarem, de tanto espancar, um escravizado. Isso no século 18”, conta. “Olha o nível da violência.”
Prática relativamente comum entre escravizados no Brasil, a compra da liberdade era mais difícil para um “escravo da religião”. Enquanto no caso daquele que servia a um senhor leigo bastava convencê-lo — com acordos e, muitas vezes, um valor em dinheiro — no caso dos monges era preciso passar por um processo formal.
As ordens religiosas libertaram seus escravos ao longo de 1871, 17 anos antes da Lei Áurea. A primeira instituição a fazer isso foi a Ordem de São Bento. Aos poucos, os beneditinos foram seguidos pelos demais religiosos.
Pesquisa: Jose Lucas
Fonte: https://observatorio3setor.org.br/