DestaqueHistórias Afro-BrasileirasNotícias

Quem foi Maria Felipa, a escravizada liberta que combateu marinheiros portugueses e incendiou navios

O dia 2 de julho é data mais emblemática da luta dos baianos pela independência do Brasil chega aos seus 200 anos em 2023. Nesse episodio destacamos o papel da negra Maria Felipa

 

“Nasceu escrava, mas depois de liberta colocou a liberdade como maior tesouro de sua vida, moradora da Ilha de Itaparica, negra, alta, desde cedo aprendeu a trabalhar como marisqueira, pescadora, trabalhadora braçal que aprendeu na luta da capoeira a brincar e a se defender, que vestia saias rodadas, bata, torso e chinelas, foi líder de um grupo de mais de 40 mulheres e homens de classes e etnias diferentes, onde vigiava a praia dia e noite a fortificando com trincheiras para prevenir a chegada do exército inimigo, e organizava o envio de alimentos para o interior da Bahia (recôncavo), atuando na luta pela libertação da dominação portuguesa.”

 

Este trecho do livro Maria Felipa de Oliveira – Heroína da Independência da Bahia, de Eny Kleyde Vasconcelos Farias, se refere a esta personagem no mínimo controversa da história baiana e brasileira.

Praticamente não existem registros ou documentos históricos que atestem a existência dela e de seus feitos. Mas 200 anos depois, ela continua viva na tradição oral de Itaparica e de cidades do Recôncavo Baiano e nas comemorações da independência.

De acordo com o historiador Milton Moura, professor de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a tradição popular situa Maria Felipa sempre ao lado das outras duas heroínas, Joana Angélica e Maria Quitéria.

 

O filho de nordestino e abolicionista que patrocinou a indústria vinícola gaúcha

Fim do Matérias recomendadas

A primeira a quem Moura se refere é Joana Angélica de Jesus, superiora do Convento da Lapa, em Salvador, que foi assassinada por soldados portugueses que queriam invadir o local, no dia 8 de novembro de 1822, na Batalha de Pirajá.

A segunda é Maria Quitéria de Jesus, a primeira mulher a ingressar nas Forças Armadas brasileiras e, que para isso, se disfarçou de homem — cortou o cabelo, amarrou os seios e vestiu roupas masculinas — e se alistou como soldado Medeiros.

 

Maria Felipa teria nascido na Ilha de Itaparica em data incerta e morrido em 4 de julho de 1873. Chamada na época de Arraial da Ponta das Baleias, a ilha passou depois a ter o nome atual, que, em tupi, significa “cerca de pedra”, devido aos recifes de corais que a rodeiam. Ela tem 36 km de comprimento e uma superfície de 180 km², que abrigam 36 localidades.

Segundo conta Eny Kleyde em seu livro, baseado principalmente em depoimentos orais de ilhéus atuais e obras de autores que a precederam – entre os quais Ubaldo Osório Pimentel (1883-1974), avô do escritor João Ubaldo Ribeiro -, Maria Felipa, descendente de sudaneses, nasceu na Rua da Gameleira, no atual município de Itaparica. Ela morou na região de Beribeira e, depois, na Ponta das Baleias, num casarão chamado “Convento”.

Localizado próximo às principais edificações, o “Convento” era uma residência de trabalhadores, na qual se alojavam pescadores, carpinteiros, marisqueiros, entre outros, conta Eny em seu livro.

“Maria Felipa nasceu ‘provavelmente em 1799’, conforme registra Fernando Rebouças, em publicação do Informativo Assabita [Associação dos Amigos da Biblioteca de Itaparica].”

De acordo com o historiador Pablo Antonio Iglesias Magalhães, da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), a personagem Maria Felipa apareceu pela primeira vez em letra de forma no livro A Ilha de Itaparica: História e Tradição, escrito por Pimentel mais de um século depois da guerra.

 

De acordo com a tradição oral, no entanto, na guerra de independência da Bahia, Maria Felipa teria se destacado na defesa de Itaparica, quando os portugueses atacaram a ilha em 7 de janeiro de 1823.

Segundo Laurentino Gomes, em seu livro 1822, que não tem nenhuma referência à personagem, foi um grande ataque lusitano, com “40 barcas, dois brigues de guerra e lanchas canhoneiras contra a fortaleza de São Lourenço e o povoado”. Mas os baianos resistiram, no entanto, e depois de três dias de combates, derrotaram os inimigos.

O professor de história da América, Rodrigo Lopes, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), chama atenção para o fato de que a ilha era um local estratégico para portugueses e baianos, pois está no caminho entre a foz do Rio Paraguaçu e a Baía de Todos os Santos, por onde entrava a maior parte dos víveres que abasteciam a cidade de Salvador.

Por isso, ocupar Itaparica era condição indispensável para que os portugueses pudessem ter acesso a alimentos, que já não chegavam do sertão por terra, pois os baianos, liderados por Pedro Labatut, general francês contratado para comandar as tropas brasileiras, haviam formado uma barreira em Pirajá.

“A intenção era matar a ‘marotada’ de fome”, informa Lopes. A palavra “marotos” designava os portugueses colonialistas na época.

Foi neste contexto de guerra que Maria Felipa teria atuado e se destacado. Conta a tradição que ela se alistou na Campanha da Independência, que reunia índios, negros livres e escravizados — africanos e brasileiros e até alguns portugueses, que eram a favor da independência do Brasil, e que organizavam a resistência na ilha.

Segundo Eny Kleyde narra em seu livro, na Campanha havia as “vedetas”, no sentido de sentinelas ou vigias, que, dia e noite, vigiavam barcos próximos ou que vinham ao longe, com intenção de atacar a ilha.

“Maria Felipa de Oliveira era líder das ‘vedetas’, observando as praias, as matas, os caminhos e subindo em outeiros, principalmente o do Balaústre e o da Josefa, que ficavam próximos aos campos de guerra, para identificar os portugueses que desciam dos barcos para saquear”, diz a escritora em sua obra.

Mas Maria Felipa também teria entrado em combate direto, durante a batalha de 7 de janeiro.

“Ao contrário do que acontece com relação a Joana Angélica e Maria Quitéria, não dispomos de documentos de arquivo que atestem a existência e atuação dela”, ressalva Moura.

“A tradição popular vem, assim, completar a lacuna dos arquivos. Maria Felipa é situada principalmente em dois eventos, sempre acontecidos na beira do mar”.

O primeiro, continua Moura, é a surra de cansanção (Jatropha urens), uma planta urticante que produz uma coceira intensa e que, com golpes vigorosamente desferidos, pode produzir queimaduras muito dolorosas, que Maria Felipa e suas companheiras teriam dado nos soldados portugueses.

“A narrativa fala de um grupo de mulheres que começaram a dançar na praia, de modo insinuante”, conta o historiador.

“Quando os portugueses se aproximaram, elas teriam se lançado sobre eles com os molhos de cansanção ocultados sob os arbustos.”

Há outras versões sobre como elas esconderam os galhos da planta. Segundo uma delas, Maria Felipa e suas companheiras aproveitavam suas roupas largas para ocultar armas, principalmente peixeiras (facas), que usavam em seu trabalho. Elas também misturavam folhas de cansanção junto a flores e outros ramos comuns, que faziam com que parecessem apenas enfeitadas. Mas na verdade, estavam vestidas para matar.

O segundo episódio citado por Moura é o incêndio de navios portugueses causado por tochas, lançadas de uma canoa conduzida por Maria Felipa e suas companheiras, impondo assim perdas às tropas inimigas.

O quadro Alegoria ao 7 de Janeiro, de autoria de Mike Sam Chagas, professor da Escola de Belas Artes da UFBA, pintado em 2019, retrata a batalha de 7 de janeiro de 1823.

Na obra, reproduzida acima, a personagem Maria Felipa aparece no centro, com uma blusa clara que deixa os ombros à mostra e uma tocha acesa em uma das mãos.

“À sua esquerda, outra mulher empunha um ramo de ervas — justamente o cansanção”, descreve Moura.

“Veem-se personagens índios, negros e brancos. No canto superior esquerdo, o Forte de São Lourenço, onde está guardado o quadro. No canto superior direito, os navios portugueses.”

O problema é que não há provas históricas destes dois episódios.

“Não há registros sobre a tal ‘sedução’ com dança”, diz o pesquisador independente itaparicano Felipe Peixoto Brito.

“Além do mais, considerando o clima de beligerância, e profundo preconceito das tropas europeias (até mesmo contra brancos nascidos no Brasil), jamais dariam lugar a tal cena. A narrativa me parece recente, e fruto de um sexismo, em que uma mulher só poderia vencer homens em um confronto se valendo do desejo do seu corpo, de traição ou de veneno.”

No caso dos navios portugueses incendiados, Brito diz que, de fato, alguns foram queimados e destruídos pelas forças itaparicanas, entrincheiradas ao longo de mais de 8 km entre a Praia do Mocambo, o povoado de Itaparica, e a praia de Amoreiras.

“A ilha foi atacada por mais de 40 navios armados de diferentes tamanhos”, conta.

“Apesar da grande perda de soldados e marinheiros portugueses (cerca de 200, entre mortos e feridos), sabemos que o incêndio de todos eles não ocorreu, sendo fruto do exagero ou de confusão narrativa, pois isso representaria um massacre vergonhoso e de grandes proporções para época.”

Com outras palavras, é o que também diz Magalhães. Ele observa que, se uma única embarcação tivesse sido destruída, seria necessário fazer os competentes relatórios. Destruir dezenas delas colapsaria a marinha portuguesa da época, e os responsáveis por uma falha dessa natureza deveriam responder aos superiores ou comissão militar.

“Uma única canhoneira causou imensa comoção ao atacar a vila de Cachoeira, em junho de 1822”, lembra.

“Considerado o estrago que dezenas de barcos poderiam realizar, deve-se ponderar o que representaria, à época, a mítica ação de incendiá-los. Alguém teria que responder pelo fiasco.”

O historiador Jaime Nascimento é mais radical sobre a existência de Maria Felipa.

“Ela não existiu”, garante. “É uma personagem de ficção criada pelo escritor itaparicano Ubaldo Osório, avô de João Ubaldo Ribeiro, que foi apropriada por segmentos do ‘Movimento Negro’ e transformada em ‘Heroína da Independência’ de forma bizarra e desonesta com a história.”

Tendo existido ou não, e mesmo com a história praticamente desconhecida, Maria Felipa de Oliveira foi declarada, em 26 de julho de 2018, Heroína da Pátria Brasileira pela Lei Federal nº 13.697, tendo seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, que se encontra no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília.

 

*pesquisado por: José Lucas (Folha do Pirajuçara)

*fonte: https://www.bbc.com/

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *