Anajá Caetano: a escritora negra sem passado
Anajá Caetano nasceu em São Sebastião do Paraíso, sul de Minas Gerais, região cafeeira próxima à divisa com São Paulo. Sua data de nascimento, assim como fotos e demais dados biográficos, permanecem até hoje envoltos em mistério. As poucas informações impressas a que se tem acesso constam dos paratextos presentes no único romance de sua autoria encontrado até o momento: Negra Efigênia, paixão do senhor branco, publicado em São Paulo, em 1966, e hoje fora de circulação.
Em nota introdutória, a autora se declara “romancista negra”, oriunda da nação angolana Quiôco, etnia reconhecida pela força de sua arte secular, com acervos importantes nos museus de Neuchatel, na Suíça e Dundo, em Angola. Já de início, portanto, a fala autoral explicita seus vínculos com a história dos antepassados africanos, precursores de inúmeros artistas, tanto lá, quanto nas Américas.
Em seu livro Silêncios prEscritos, estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006), a pesquisadora Fernanda Miranda afirma ser Anajá Caetano a “primeira romancista a auto enunciar sua identidade negra de forma declarada no discurso, isto é, com um sujeito que se afirma negro em primeira pessoa. […] E afirma saber de onde veio, condição rara na experiência negra na diáspora.” (MIRANDA, 2019, p. 193).
Segundo a pesquisadora Eunice Arruda, que assina a orelha do livro, Anajá Caetano teve como mentor e “pai de criação” José de Souza Soares – intelectual empenhado no estudo da formação social e econômica da região desde os tempos coloniais, autor de São Sebastião do Paraíso e sua história – cujos escritos teriam auxiliado a romancista no adensamento do lastro de realidade presente na narrativa protagonizada pela negra Efigênia. Com efeito, o romance se empenha em reconstituir as relações entre senhores e escravizados, no contexto do paternalismo senhorial então vigente.
Por sua vez, o poeta e pesquisador Eduardo de Oliveira, no prefácio do romance, classifica a autora como “autodidata” que “envereda pelos ínvios caminhos das ‘belas letras’ mais por vocação que mesmo por força de eventual diletantismo”, e ressalta as qualidades do texto, para ele “uma genial e bem sucedida tentativa de reconstituição histórica.” (1966, p. 11).
De fato, além de ter como núcleo temático a escravidão, a narrativa se empenha em resgatar aspectos relevantes das culturas negras diaspóricas e realçar os elos destas com o Brasil e os brasileiros.
A historiadora Maria Lúcia de Barros Mott assim apresenta o romance:
A história remonta ao final do século XVIII, e relata a ocupação e a expansão agrícola do Sul de Minas até o 13 de Maio. Efigênia, escrava de uma senhora cruel, foi raptada para ser esposa de um proprietário branco que, anos antes da Abolição, já havia transformado os escravos em colonos.
Para Anajá, a escravidão não destruiu a cultura dos escravos, nem mesmo suas lideranças nativas. Cultura e liderança reconhecidas pelos brancos. A crueldade do sistema centraliza-se quase exclusivamente nas sinhás. Eram elas que castigavam duramente os escravos e, sobretudo, as escravas, sendo por isso desprezadas por seus parceiros, como também por serem consideradas sexualmente devassas. Os homens brancos, a Igreja e mesmo os escravos não condenavam a união entre senhor-escrava. (MOTT, 1989).
De fato, o livro destaca a perversidade da sinhá, como se pode constatar nos capítulos 20 e 21, em anexo. Nestas e em outras passagens, a escravidão é apresentada sem retoques, com o ser humano reduzido a mera força de trabalho e submetido aos suplícios do chicote e do tronco.
Por outro lado, a paixão encenada entre o bom senhor e a escrava salva da morte para ser sua mulher é motivo de reparos do crítico inglês David Brookshaw. Em Raça e cor na literatura brasileira (1993), ele reprova a idealização de um casamento harmonioso entre personagens situados em territórios sociais antagônicos, e destaca a “falta de tensão” daí decorrente, que transborda para os campos religioso e cultural.
Já Eduardo de Oliveira prefere destacar a humanidade que permeia os personagens tanto brancos quanto negros, com suas virtudes e defeitos. Assim, o romance constrói um quadro histórico o mais amplo possível, em que têm lugar seres como Antônio Bento e o padre Thomás, que estabelecem o necessário contraponto à naturalização da brutalidade inerente ao sistema escravocrata.
Pesquisa : Jose Lucas (Folha do Pirajuçara)
Fonte : www.letras.ufmg.br