Melânia Luz: a vida e a morte de uma pioneira invisível
Primeira mulher negra a defender o Brasil numa Olimpíada, paulista vivia o esporte por amor ao atletismo e ao São Paulo. Caiu no esquecimento, e seu falecimento, em 2016, não foi divulgado
Melânia nasceu em 17 de maio de 1928, no Bom Retiro, mas foi registrada apenas duas semanas depois, em 1º de junho. Comemorava o aniversário nas duas datas. Foi criada no bairro do Canindé, que na época abrigava a sede social e o centro de treinamento do São Paulo. Os pais, um policial militar e uma dona de casa, eram torcedores fanáticos e passaram a paixão para a filha. A possibilidade de defender o clube do coração foi incentivo o suficiente para começar a praticar esportes.
Com a Europa em reconstrução, definitivamente não seriam Olimpíadas quaisquer. O mundo se recuperava da Segunda Guerra Mundial quando a Inglaterra recebeu os Jogos de Londres, em 1948. Sem margem para luxos, era preciso improvisar. Instalações militares e instituições de ensino foram adaptadas como alojamentos e locais de provas. Nada que incomodasse quem competiria após 12 anos de hiato olímpico.
Seria uma edição histórica para o Brasil. Uma delegação de 81 atletas, apenas 11 mulheres, que pela primeira vez iriam aos Jogos de avião – uma novidade empolgante em comparação a quem, até Berlim 1936, viajava de navio para competir no Velho Continente.
A primeira medalha coletiva do Brasil, um bronze com o basquete masculino, é considerado o ápice daquela campanha, mas o ponto mais importante para a nossa história foi o envio da primeira equipe feminina de atletismo pela Confederação Brasileira de Desportos, a CBD. Entre as seis atletas pioneiras, Melânia Luz, velocista, tornava-se a primeira mulher negra a representar o Brasil numa Olimpíada.
As seletivas em São Paulo, o trem noturno até a Central do Brasil, no Rio de Janeiro, e o voo da Panair a levaram a um lugar histórico que caiu no esquecimento. Com uma carreira de poucos resultados expressivos e muitas barreiras invisíveis aos olhos, Melânia se agarrou às próprias memórias quando o Alzheimer tentou vencê-la.
– Ela falava para todo mundo: “Eu sou a primeira negra que fui à Inglaterra. Conversei com a rainha”, ela falava. (risos). Mesmo no fim da vida ela lembrava detalhes, quem foi o porta-bandeira… – conta a filha Maria Emília.
Melânia não disputou nenhuma final em Londres. Nos 200m se despediu em quarto lugar na primeira bateria classificatória, com 26s6. O mesmo aconteceu com o revezamento 4x100m. Neste caso, porém, os 49s cravados no cronômetro manual eram o novo recorde sul-americano da prova.
Melânia foi uma das quatro atletas do São Paulo a defender o Brasil em Londres 1948. Além dela também representaram o Tricolor Adhemar Ferreira da Silva, que seria bicampeão olímpico do salto triplo nas duas edições seguintes dos Jogos, e os pugilistas Ralph Zumbano e Vicente dos Santos.
Sem muita afinidade e intimidade com as demais atletas mulheres do atletismo, driblou as orientações de separação entre homens e mulheres para ter a companhia do trio são-paulino sempre que possível.
Uma vez registrada no quadro de atletismo do clube, Melânia passou a treinar com Dietrich Gerner. O alemão radicado no Brasil ficou famoso como técnico de Adhemar, atleta mais condecorado com quem trabalhou e homenageado com duas estrelas douradas no escudo do São Paulo.
– Você não podia ficar brincando, não. “Não estou aqui para brincar com vocês. Estamos aqui para treinar, vocês têm um campeonato, vocês têm que treinar”. “Nós num “guenta”, Melânia, como nós vamos aguentar?” Aí treinava, treinava – disse Wanda dos Santos, atleta olímpica de Helsinque 1952 e Roma 1960, que foi levada do Palmeiras para o São Paulo a convite da amiga Melânia.
O principal feito individual de Melânia como atleta do São Paulo de que se tem registro a nível nacional foi na quarta edição do Campeonato Brasileiro de Atletismo, em 1946. Ela foi campeã dos 200m com 27s e ficou em segundo nos 100m com 13s4. Com a seleção paulista foram quatro títulos no revezamento 4x100m de 46 a 1953.
As viagens para os eventos dos veteranos se tornaram parte importante da vida da paulista, que chegou a competir no Mundial de Durban, em 1997, já beirando os 70 anos. Quando voltou da África do Sul aos poucos Melânia foi reduzindo o ritmo até pendurar de vez as sapatilhas.
Pesquisa: Jose Lucas (Folha do Pirajuçara)