Padre Victor: conheça a história do primeiro beato ex-escravo do Brasil
Jovem negro venceu preconceitos e se tornou padre em meados de 1800. Após vida dedicada aos pobres, ele será beatificado em Três Pontas, MG.
O livro que conta a história de Francisco de Paula Victor, escrito pelo teólogo italiano Gaetano Passarelli, começa com um sonho. O jovem negro, escravo, que passava seus dias na Campanha (MG) do início do século XIX, revela ao seu professor de alfaiataria que queria ser padre. Era um sonho impossível a pessoas como ele à época, mas ter fé é crer no que não é possível. E Victor venceu todos os preconceitos e barreiras sociais, se tornando o primeiro padre ex-escravo do Brasil. No dia 14 de novembro de 2015, ele foi beatificado pela Igreja Católica em Três Pontas (MG).
O que se sabe de Victor está descrito nos poucos documentos que ele deixou em vida e nas dezenas de depoimentos das pessoas que o conheceram. São histórias passadas de pais para filhos que contam de sua humildade, total dedicação às pessoas, persistência ante obstáculos racistas. O que se pode perceber na vida de Padre Victor é que a fé realmente “remove montanhas”, e um sonho é capaz de mudar a realidade de uma época.
Vida no interior das Minas de outrora
A história de Padre Victor começa em um casarão na Rua Direita da Campanha (MG) de 1827. Foi ali que ele nasceu no dia 12 de abril. O primeiro documento consta que ele foi batizado oito dias depois pelo padre Antônio Manoel Teixeira. Cidade mais antiga do Sul de Minas, àquela época a vila de Campanha da Princesa da Beira reunia fazendeiros em busca de ouro e seus escravos.
Casarão em Campanha, MG, onde Padre Victor nasceu – em pé até atualmente (Foto: Samantha Silva / G1)
Victor nasceu escravo, mas não viveu como um. Veio ao mundo na casa de dona Marianna Bárbara Ferreira, que de forma contrária à época, tratava os escravos da casa com dignidade. Por Victor, o carinho foi maior ainda e ela se tornou sua madrinha. Sob sua tutela, ele aprendeu a ler, escrever, tocar piano, falar em francês. Aprendeu até a sonhar.
O casarão onde Victor nasceu permanece em pé até os dias de hoje. Atualmente a Rua Direita se chama Saturnino de Oliveira e o casarão abriga uma loja de artesanato da família da artista Marisol Garcia da Luz, de 51 anos. Ela e a filha Júlia da Luz, de 34 anos, tomaram como missão preservar a história de Padre Victor. Formada em turismo, Júlia chegou a desenvolver um trabalho acadêmico sobre a casa em que mora há uma década.
Segundo ela, o velho casarão colonial só foi alterado em alguns detalhes, após passar por duas reformas. As telhas mudaram para as francesas e foram tiradas as feitas na coxa pelos escravos. As janelas de guilhotina foram substituídas pelas de folha e detalhes de vidro foram colocados nos pórticos das portas. Banheiros que não existiam na época e uma varanda ao fundo foram construídos.
“Quando chegamos, foi uma surpresa. A gente não sabia que ele tinha nascido aqui, o imóvel já estava fechado há algum tempo. Aí a gente percebeu que tinha muita história [para preservar]”, conta Júlia, e continua descrevendo o que sabe. “Dona Marianna era uma mulher de posses. Eles tinham dinheiro, moravam no centro da [vila]. [A família dela] tinha eira e beira.”
A expressão de tempos antigos é explicada por Júlia: eira é o eirado, espaço onde as pessoas secavam sementes, criavam pequenos animais. A beira é o beiral do telhado, e naquela época, ‘beiras’ trabalhadas revelavam um refinamento que só famílias com dinheiro poderiam ter.
“[Victor] teve muita sorte, foi iluminado, nasceu em uma casa com a dona Marianna, que foi a madrinha dele, pagou tudo o que foi preciso, proporcionou tudo o que ele teve”, completa Júlia.
Júlia e Marisol aos fundos do casarão onde Padre Victor morou, em Campanha (Foto: Samantha Silva / G1)
O sonho revelado
Na juventude, Victor começou a trabalhar como alfaiate e foi ao seu mestre que revelou primeiramente a vontade que tinha de ser padre. A reação, como de qualquer um que ouvisse de um negro escravo que queria uma posição de brancos, não foi boa. Conta-se que após sua revelação, Victor apanhou em rua pública de seu mestre.
Mas reação oposta teve sua madrinha. Ao ouvir o sonho do afilhado, foi atrás do padre da cidade para saber se isso seria possível. Meio incrédulo, porém esperançoso, padre Antônio Felipe de Araújo disse que o bispo de Mariana (MG), Dom Antônio Ferreira Viçoso, visitaria a vila em breve e com ele poderiam consultar a possibilidade.
Segundo o livro de Passarelli, um documento de inspeção do Império em Campanha, em 1737, registra que a vila era habitada por 3 mil brancos e 7 mil negros. Esse documento passou a ser considerado o registro de início da cidade, a mais antiga da região.
À época, jovens negros e escravos não eram aceitos em um seminário católico. A Lei do Ventre Livre e a Lei Áurea, que aboliram a escravidão no Brasil, só se tornaram realidade em 1871 e 1888 respectivamente. Mesmo excluindo suas características de nascença, Victor já não poderia entrar pra vida religiosa simplesmente por ser filho ‘só de mãe’, de pai desconhecido, como explica o atual bispo de Campanha.
Dom Diamantino Prata de Carvalho acompanha o processo de beatificação de Victor desde o início e conta que, admirado com a força de vontade de Victor, o bispo resolveu ajudá-lo. Para ele, a bênção de dom Viçoso foi essencial para que o jovem pudesse se encaminhar no sonho.
“São gestos proféticos, que a gente diz na igreja. Há pessoas que intuem, que preveem certas situações e aí já se movimentam, realizam obras capazes de favorecer aquilo que o movimento quer, [no caso] o movimento da abolição da escravatura”, explica.
Mas se o Brasil caminhava para uma transformação, o Sul de Minas do século XIX não estava preparado para ver a mudança tão cedo. Após ser aceito no seminário, como havia prometido a Deus, Victor fez o caminho até Mariana a pé. Ao chegar, foi recebido com um convite para os fundos da instituição, por onde os escravos entravam. Foi difícil se fazer acreditar que ia entrar pela porta da frente, que seria aluno e não serviçal.
Dom Diamantino, bispo de Campanha: ‘ele superou tudo com muita dignidade’. (Foto: Samantha Silva / G1)
Uma vez lá dentro, o tratamento foi digno de um teste de perseverança. “A repercussão não foi boa. Os próprios colegas de Padre Victor o humilhavam, queriam que ele fizesse trabalhos de escravo, limpar o chão, os sapatos de todos”, continua Dom Diamantino.
Conta-se dessa época que Victor fazia o que pediam, como um escravo, “porque não era trabalho pra ele”. Dom Viçoso interferiu na medida do possível para que ele fosse tratado como aluno, e como a água que aos poucos fura a pedra, ao se formar no seminário, o desprezo dos colegas foi transformado em no mínimo respeito e muita admiração. “Foi muito difícil, mas ele superou com muita dignidade, com muita paciência, humildade”, finaliza dom Diamantino. O jovem negro ex-escravo se tornava padre.
Missão religiosa
A ordenação de Padre Victor aconteceu no dia 14 de junho de 1851, com a bênção de todos os religiosos necessários. Uma vez pároco, Victor voltou para Campanha e rezou sua primeira missa na cidade natal. Por lá permaneceu por cerca de um ano, até que chegou a notícia de sua transferência para Três Pontas.
Padre Victor chegou à pequena vila em junho de 1852 para substituir o vigário da paróquia que havia morrido. Ironicamente, segundo consta no livro de Passarelli, a origem de Três Pontas está ligada a duas aldeias de negros fugitivos (quilombos), e para destruí-las, o governo da Capitania de Minas Gerais encarregou dois capitães. Após a missão concluída, eles dividiram o território em lotes de que tomaram posse.
À época em que o padre negro chegava em Três Pontas, a vila reunia em sua maioria fazendeiros que faziam riqueza com o trabalho dos escravos. E se no seminário, onde Deus é chamado todos os dias, a reação em aceitar um padre negro foi difícil, em Três Pontas ela poderia ter se tornado uma tragédia.
”Ele também não foi bem recebido em Três Pontas”, continua Dom Diamantino. “O povo simples o aceitava bem, mas os graúdos… Por exemplo, o visconde de Boa Esperança falava: ‘nós pedimos um padre sábio, um padre bom e manda aqui um negão’. Mas [Padre Victor] foi para amar o povo e perdoar os inimigos.”
Padre Victor também não foi bem recebido em Três Pontas. Falavam: ‘nós pedimos um padre sábio, um padre bom e manda aqui um negão’. Mas ele foi para amar o povo e perdoar os inimigos. Estava acima das humilhações, perseguições. Ele via realmente com o olhar de Cristo.”
Dom Diamantino Prata de Carvalho, bispo de Campanha
E foi preciso muita sabedoria e persistência para derrubar o grande preconceito que havia na época. Ele passou por agressões, missas rezadas para uma igreja praticamente vazia, piadas ofensivas. Mas a bondade e a caridade que o religioso continuou a dedicar aos moradores da vila, apesar de todas as humilhações, pouco a pouco conquistou até os fazendeiros mais ricos da região e ele passou a ser conhecido como o lendário padre negro de Três Pontas.
Vida ao outro
Desse período, tudo que se conta foi passado de família a família e todos os depoimentos foram reunidos na pesquisa histórica para o processo de beatificação. Muitos se lembram de sua voz grave e de sua personalidade rígida, justa, porém bondosa. Padre Victor morava em um casarão simples e vivia praticamente de doações.
À medida que a estima por ele aumentava, também aumentava o que lhe era doado. Mas nada a ele pertencia. Conta-se que um homem pobre foi a Padre Victor com o estômago vazio pedir o que comer. Victor havia acabado de se encontrar com um dos muitos fazendeiros que passaram a frequentar a igreja após se admirar com o padre negro, e dele ganhou uma quantia de réis para ajudar na paróquia.
O envelope com o dinheiro estava no bolso do religioso, e sem pensar, ao ouvir o pedido do homem, o entregou tudo. Quando o pedinte viu a grande quantia que estava no envelope, voltou correndo para devolver a maior parte e só ficar com o suficiente para comer. Em sua cabeça, o padre se enganou ao lhe dar tanto dinheiro. Mas Victor disse: “eu já lhe dei o que tinha e não quero de volta. Fique com tudo”.
Atitudes como essa foram repetidas por muitos moradores da época. O que tinha na casa do padre era de todos, e todos entravam livremente para pegar comida, dinheiro, objetos. Conta-se que Padre Victor somente repetia que esperava em Deus e por isso nunca iria faltar.
Nos fundos de sua casa, o padre ainda cuidava de um leproso – doente rejeitado pela sociedade da época pela falta de cura para a doença. O homem apareceu na igreja um dia e Padre Victor ofereceu ajuda. No cômodo onde ele passou a viver, só Padre Victor entrava e passou a cuidar do doente por quanto houve necessidade.
Conta-se também que enfrentar o demônio não era coisa difícil para o padre. Victor foi um padre exorcista e foram muitos que procuraram sua ajuda para tirar o demônio de entes queridos e residências familiares. Não há notícias de que alguma vez o padre negro não tenha conseguido expulsar o “ser maligno”.
Educando uma época
Mas além da infinita bondade para com a população, Padre Victor quis doar algo mais para os moradores daquela pequena vila: educação. Conta-se que desde que chegou a Três Pontas, o religioso reunia as crianças e ensinava o que sabia a cada uma delas. Ensinou-lhes música (e se não tinha instrumentos musicais, pedaços de madeira, ferro e restos de casas se transformavam neles), francês, sobre o mundo de Deus.
As crianças o adoravam. Mas em determinado momento, Padre Victor resolveu profissionalizar a educação e fundou uma escola, a primeira de Três Pontas. Ali reuniu filhos de gente simples e gente rica para aprender de professores que trouxe de fora e dele mesmo. Deu aulas no Colégio Sacra Família até quando a saúde dele permitiu. Logo depois, iniciou a reforma da capela para se tornar a Igreja Matriz de Nossa Senhora D’ajuda, até hoje em pé em Três Pontas.
Padre Victor fundou um colégio com grande nº de alunos. Esse educandário, com organização perfeita, adquiriu conceito igual ao do Colégio do Caraça [antiga instituição de MG]. Fez de muitos filhos de famílias humildes, homens de cultura, que passaram a viver da inteligência. Podemos afirmar que a cultura da cidade é ainda fruto da atividade educativa que legou aos pósteros, o amor à instrução e ao aprimoramento do gosto artístico.”
Transcrito do Livro: “A História de Três Pontas”, de Amélio Garcia de Miranda
Mas para tornar esses planos realidade, foi preciso muito dinheiro. Mesmo precisando investir nas duas obras, Padre Victor não diminuiu seu lado caridoso e continuou dando tudo o que tinha para todos. De repente, o dinheiro começou a faltar e as dívidas se acumularam.
Uma denúncia foi feita ao Seminário de Mariana sobre os títulos não pagos (ainda) pelo padre de Três Pontas e Victor foi chamado a prestar contas ao bispo. Conta-se que ao chegar na sala de Dom Viçoso, seu velho padrinho, Victor colocou seu chapéu na parede e ele permaneceu dependurado, mas no lugar não havia gancho para segurar o chapéu.
Apesar do espanto, dom Viçoso manteve as palavras duras e quis entender o que estava acontecendo. Padre Victor explicou tudo o que estava fazendo, reconheceu seu erro administrativo e prometeu resolver a situação.
Triste com sua desorganização financeira, Padre Victor voltou para Três Pontas com uma decisão drástica: iria pedir demissão da paróquia já que um grande mal havia feito (sem querer) para aquela comunidade. Os moradores se espantaram com a possibilidade de perder o pároco querido e resolveram fazer algo.
Conta-se que em uma noite se reuniram todos na porta da casa do padre e lhe entregaram um envelope com todas as suas dívidas quitadas. O povo mesmo reuniu dinheiro pra isso e o fizeram prometer que não deixaria Três Pontas.
Acima de tudo, um grande homem
E ali Padre Victor permaneceu por 53 anos até deixar este mundo. Morreu no dia 23 de setembro de 1905 após ter um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Sua escola formou pessoas importantes para a região como o primeiro bispo de Campanha, dom João de Almeida Ferrão, e o médico Samuel Libânio (que hoje dá nome ao hospital de Pouso Alegre – MG).
Mas sua bondade foi além e formou uma geração que pôde enxergar uma alma semelhante apesar de todas as cores que pudessem nos separar como humanos. “Ele estava acima das humilhações, perseguições. Ele via realmente com o olhar de Cristo”, afirma dom Diamantino.
“Ele foi um grande ser humano, uma pessoa que tinha muita fé. Acredito que ele foi um homem muito autoconfiante, tinha muita força, muita vontade e fez exatamente o que ele quis. Tudo o que ele podia dar, ele deu. Morreu com a roupa do corpo. Ele realmente foi um homem de Deus”, finaliza Júlia.
Pesquisa feita por: José Lucas S. Pedroso (Folha do Pirajuçara)
Fonte: G1 globo