Rainha Zeferina, a angolana
Escravizada quilombola que participou de uma revolta nas cercanias de Salvador (BA), em 1826. Lutou armada e com gritos de guerra estimulava o seu grupo, foi presa e condenada a trabalhos forçados.
Zeferina, segundo Maria Inês Cortes de oliveira no livro “O liberto: o seu mundo e os outros” tinha origem angolana e foi trazida criança ainda, uma vunje em desassossego de viagem transatlântica, na primeira metade do século XIX, encolhida nos braços da sua mãe Amália, para Salvador. Sentiu a penumbra agônica da viagem no navio negreiro, ouviu o baque dos corpos negros no mar e percebeu que teria que ser grande para enfrentar as atrocidades da escravização. Sua mãe Amália, em saber matrilinear, lhe ensinou a tradição dos ancestrais, lhe demonstrou como acessar os poderes das inquices para manter a sua espiritualidade e realeza soberana diante das barbáries.
No saber da oralidade documental, a história costurada no boca-a-boca, no fluir perseverante das vozes históricas do povo negro, Zeferina foi uma rainha que fundou o Quilombo do Urubu, e uma sociabilidade baseada em modelos civilizatórios africanos para se proteger e salvaguardar todo o seu povo da escravidão. Foi uma líder com muito poder, a qual todos a reverenciava e seguia as suas estratégias de luta. Ela organizou índios, escravizados fugidos, ou melhor, homens e mulheres que cunharam a sua liberdade com coragem, e libertos, no geral, que queriam a libertação para todos os negros na província do Salvador.
Zeferina tinha ambições grandiosas, sabia que a liberdade de boca da mata, o quilombo, era um principio libertador, e que poderia ruir, haja vista o quilombo do Cabula que foi destruído em 1807. Ela sabia disso, compreendia que era necessário se unir com os nagôs, invadir a cidade e matar os brancos escravocratas para constituir uma liberdade plena para todo o povo negro. O livro “Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil” organizado por João José Reis e Flávio dos Santos Gomes, mostra isso, pois Reis (2003) fala do relato involuntário do presidente da província se referindo a Zeferina com uma rainha e dos planos de invasão dela a Salvador para matar os brancos e conseguir a liberdade.
O planejamento do levante estava organizado para ocorrer no dia 25 de dezembro de 1826, no natal, como a própria Zeferina, em depoimento no Forte do Mar, local onde eram presos todos os quilombolas, afirmou quando se encontrava aprisionada. No entanto, um acontecimento fez com que a revolta tivesse o seu início antecipado, pois no dia 17 de dezembro alguns capitães do mato tentaram surpreender, pensando que havia poucas pessoas na mata do Urubu, e se depararam com cinquenta mulheres e homens aquilombados com espingardas, facas, arcos e flechas e fações, que sobre o comando de Zeferina os derrotaram. Assim, três capitães do mato foram mortos e outros três saíram gravemente feridos, conseguiram escapar e já em matas do Cabula encontraram o comandante de tropa, Jose Baltazar da Silveira, com doze soldados e um cabo, vindo de Salvador para sufocar o levante. A eles se juntaram mais de vinte soldados das milícias de Pirajá e foram atacar o Quilombo do Urubu.
Zeferina com arco e flecha na mão confrontou com os seus súditos toda a guarnição que, por ordem de Jose Baltazar da Silveira, abriu fogo contra os aquilombados que resistiram motivados pelo grito de guerra, o qual ecoou por todo o Urubu como uma onda sonora muito poderosa: “Morra branco e vivo negro! Morra branco e vivo negro! Morra branco e vivo o negro!” Foram intrépidos e corajosos na luta, mesmo estando em desvantagem, pois as tropas policias tinham as armas de fogo – maior poder letal nas suas ações no combate. No final, uma mulher e três homens do quilombo foram mortos, alguns fugiram e outros foram presos juntamente com a rainha Zeferina. Eles tentaram, em desfile de quebranto da sua realeza, destituí-la do seu orgulho; levando-a amarrada do quilombo do Urubu até a Praça da Sé com todas as ofensas e ódio racial dos escravocratas de Salvador.
Ela não se abateu, seguiu altiva e poderosa diante dos olhares – fel de atrocidades dos brancos – que a viam passar. Zeferina tinha a sua espiritualidade enraizada no poder das inquices, pilar que não permitiu esmorecer diante das impetrações dos escravocratas. Ela sabia que era grande e têm batalhas, mesmo que pareçam perdidas, não são; servem como liames poderosos que vão costurando as lutas das próximas gerações. São estros que motivam os novos espíritos à luta. Assim, seguiu firme e faleceu, sem fraquejar em seus ideais, no Forte do Mar, e teve, segundo a tradição oral da região, perpassada pelos vários terreiros de candomblé, o seu corpo enterrado nas terras do Cabula.
No Quilombo do Urubu havia, na sua constituição simbólica. uma lenda, que até hoje compõe o imaginário dos remanescentes quilombolas. Ela aparece transcrita na dissertação “O poder de Zeferina no Quilombo do Urubu” de Silvia Maria Silva Barbosa. Nessa lenda o urubu é um pássaro mítico, que deu nome ao quilombo, e que nos momentos difíceis das batalhas, as grandes sacerdotisas entravam em transe, invocavam esse pássaro, enviando-os até a África, em voo de águia veloz e poderosa, para que levassem os clamores, as orações, as demandas e pedidos de ajuda aos ancestrais, às deusas e deuses do panteão negro. O urubu era o pássaro correio que ia à África e trazia as respostas às súplicas, trazia o axé para fortalecer o espírito dos quilombolas a continuarem lutando.
O mocambo principal do Quilombo do Urubu, onde as hordas de guerreiras e guerreiros se organizavam, teciam a sua liberdade e até hoje se constitui um local sagrado para o povo de santo – é o Parque São Bartolomeu, uma das últimas áreas verdes da cidade, localizado entre o bairro Pirajá e o Subúrbio Ferroviário de Salvador. São bairros que até o momento os reminiscentes de quilombo enfrentam o genocídio à juventude negra, o racismo estrutural, as imprecauções, intolerâncias e perseguições com as religiões afro.
Zeferina, assim, é um arquétipo, é o poder matrilinear que vem – relacionado aos povos de culturas bantos – desde Nzinga, e na conjuntura de escravidão no século XIX, em Salvador, se transpôs nela e se transpõe ainda em muitas mulheres negras que lutam nessa diáspora dos desassossegos para se manterem vivas, manterem vivas as suas filhas(os), as suas comunidades, o seu povo. Penso, por pressuposição ficcional, que nos momentos mais difíceis a rainha vislumbrou que haverá de chegar o dia em que o urubu, o pássaro correio mítico, irá enviar uma mensagem, não mais de súplica aos ancestrais divinizados, mas de alegria pela grande vitória.
Pesquisa : Jose Lucas / Folha do Pirajuçara